PAIC NA REVISTA VALOR

Pobreza não justifica miséria educacional, diz secretário do Ceará

Para Maia, empresários brasileiros envolvidos com educação

são pretensiosos ao achar que eficiência se impõe.

 

Por Luciano Máximo | Valor

 

FORTALEZA*-Antes de chegar à esfera pública, o educador cearense Maurício Holanda Maia era militante de movimentos sociais que trabalhavam com crianças moradoras de rua. Como gestor educacional, continua envolvido com crianças e sua principal missão é combater o que ele chama de “analfabetismo escolarizado”, meninos e meninas que passam anos na escola pública mas não conseguem aprender a ler, escrever e a fazer operações básicas de matemática.

Atualmente como secretário-adjunto de Educação no governo estadual do Ceará, Maia faz parte da equipe de políticos e educadores que, em 2007, lançou o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), medida de cooperação entre governo e prefeituras que resultou na queda da evasão escolar e no avanço da alfabetização nos primeiros anos do ensino fundamental e colocou a educação pública do Ceará em evidência no Brasil. O Paic virou objeto de estudos em todo o país, serviu de base para um plano nacional de combate ao analfabetismo escolar, lançado no fim do ano passado pela presidente Dilma Rousseff, e caiu nas graças do empresariado brasileiro.

Na entrevista a seguir, Maia fala sobre as parcerias Estado-municípios para acabar com o analfabetismo escolarizado no Ceará e explica que o programa de alfabetização do Ministério da Educação (MEC) funcionará como um complemento às políticas cearenses. “Fui trabalhar em Sobral porque já tinha em mente que a pobreza não justifica a miséria educacional”, afirma.

Sobre gestão, ele critica o “excesso de corporativismo” dos sindicatos de professores e a “pretensão” de empresários ligados à educação, reconhece o erro do governo na condução das políticas de meritocracia do Estado e adianta que o Ceará abrirá escolas de ensino integral para o segundo ciclo do ensino fundamental.

Valor: O programa de alfabetização lançado no ano passado pelo governo federal é a nacionalização do programa cearense?

Maurício Holanda Maia: Não é razoável conseguir o mesmo modelo em nível nacional. O Paic é marcado pelo regime de cooperação entre o Estado e municípios, mas a história do relacionamento federativo entre um Estado e seus municípios é muito específica em cada unidade da federação. Leva em conta a forma como ela se construiu e evoluiu e o conjunto de recursos disponíveis em cada uma das redes. O que dá para dizer é que cooperar faz com que a gente ganhe eficiência na educação e chegue mais rápido onde precisa.

Valor: Mesmo com políticas focadas na alfabetização encontramos péssimos indicadores de qualidade dos alunos do segundo ciclo do ensino fundamental, uma espécie de limbo da educação básica. O que fazer?

Estamos apostando na escola de tempo integral para esse ciclo escolar, mas ainda não temos uma política formulada. Sabemos de algumas experiências que queremos conhecer melhor da rede do Rio de Janeiro, alguma coisa que começa a ser feita em São Paulo. Achamos socialmente mais adequado que essa faixa receba benefício do tempo integral antes dos alunos mais novos, do primeiro a quinto ano.

Valor: A precariedade da alfabetização no Brasil está relacionada com a universalização da educação básica?

Maurício Holanda Maia: Não só, minha visão sobre isso é um pouco mais complexa. Até o início da década de 1990 havia muita criança que não estudava porque não havia escola para todas, então houve todo um esforço de financiamento, precipitado pelo Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério], para cuidar do problema da oferta, mas é preciso lembrar que nessa mesma época duas políticas pedagógicas estavam muito em voga no Brasil: ações de promoção automática e de correção de fluxo, as chamadas classes de aceleração. Mesmo com boas ideias sobre o conceito de alfabetização, o que aconteceu foi a implementação de políticas frouxas nesse área do ensino, resultando num quadro perverso: meninos escolarizados, mas analfabetos.

Valor: Isso é mais grave que o problema anterior, de oferta…

Maia: É mais perverso, porque quando não se tem escola para todo mundo fica muito evidente que é uma omissão do Estado, toda a responsabilidade é do poder público. Agora quando há escola disponível para todos e os meninos não aprendem, a explicação generalizada no país foi a de que os problemas são dos meninos e de suas famílias, da pobreza: “Poxa, o garoto está na escola, vai todo dia, mas chegou até a quarta série sem saber ler… o problema é com ele”.

Educador está convencido que pobreza não é justificativa para miséria educacional


 

Valor: Não é o contrário? Fica também evidente a incompetência do poder público, não?

Maia: Como quem cria o discurso que vai produzir a explicação social sobre esse fato não são os pais dos meninos pobres, o que fica evidente, como senso comum, é que o problema é das crianças, das famílias, geralmente mais pobres. Aí entramos numa zona opaca que faz com que o professor acredite que não tinha o poder de resolver esse problema. Aqui no Nordeste você vai ouvir muita gente na rede escolar dando a seguinte explicação: “O problema do analfabetismo escolarizado é a família desintegrada ou o menino com algum nível de necessidade especial”. Ou seja, criou-se uma visão patológica que visivelmente tira a responsabilidade da escola, mas ao mesmo tempo a escola fica desacreditada.

Valor: O senhor está dizendo que a pobreza não explica a baixa qualidade da escola pública?

Maia: Basta ver a estatística do Ministério da Educação sobre abandono escolar em Sobral. Em um grupo de 15 mil meninos a taxa de abandono é zero. Eles deixaram de ser pobres? Não, estão entre os mais pobres dos brasileiros. Isso ocorrer numa escola já chama atenção, imagina em toda uma rede. Por isso a educação em Sobral chama atenção. Fui trabalhar em Sobral porque já tinha em mente que a pobreza não justifica a miséria educacional. Há toda uma corrente teórica que justifica que o problema da educação está centrado na pobreza, mas se a gente produzisse um caso, de um município do semiárido brasileiro, onde uma boa gestão pública da educação pudesse não transformar a sociedade mas produzir um fator decente, poderíamos romper o paradigma de que a escola pública será sempre ruim.

Valor: Que obstáculos foram enfrentados para romper esse paradigma?

Maia: Investimos na ideia da gestão eficiente e de resultados um pouco intuitivamente, um pouco visionariamente, hoje temos resultados. Foi preciso romper com argumentos universitários e ideológicos de determinados grupos, uma visão que tende a taxar de neoliberalismo qualquer busca de eficiência. O objetivo naquela época em Sobral e hoje é enfrentar esses dogmas com a receita de trabalhar com base na realidade, com responsabilidade, para ver o que esses dogmas têm de real e o que é besteira.

Valor: O senhor já atuou em movimentos sociais e sabe que hoje existe uma divisão ideológica na educação brasileira. Em que campo se coloca?

Maia: Me coloco num campo contraditório, que entende que o Estado é o principal responsável por prover o serviço de educação para toda a sociedade, que deve prover o melhor serviço possível, mas deve também absorver a busca pela eficiência na sua ação pública. Temos que aprender a produzir mais valor social com os recursos disponíveis, e isso é uma forma de exercer a democracia.

Valor: Então o senhor é favorável à ideia de mais gestão e menos financimento na educação, parceria com empresas e entidades, meritocracia?

Maia: Sim. Mas já que fiz afirmações que desagradam o campo ideológico antineoliberal, agora vou fazer uma afirmação que desagrada o campo ideológico ligado a empresas. Os empresários brasileiros são, na média, ainda muito pouco responsáveis, muito pretensiosos em achar que eles saberiam administrar a educação pública. Na verdade, o que eles esperam em reconhecimento é muito maior do que a contrapartida que eles aportam em recursos e em esforço de compreender a complexidade da tarefa. É natural, eles tendem a pensar, que os problemas de ineficiência da esfera pública se devem meramente à incompetência de gestores. Também minimizam alguns aspectos estruturais do modus operandi da esfera pública, que não podem ser minimizados.

Valor: Por exemplo?

Maia: Existem institutos da administração pública, determinados aspectos burocráticos legais ou aspectos de isonomia que nos obrigam ser mais lentos, nos obrigam a ser mais cuidadosos. Claro que temos que buscar o máximo de eficiência e efetividade, mas esses dois enfoques não podem sobredeterminar critérios mais relevantes do contrato social, do pacto democrático, vamos dizer assim, como o respeito à opinião de todos, a condução de processos instruídos por uma legalidade e normatividade que fazem com que eles se tornem mais lentos.

Valor: O “valor empresarial” que influencia a educação no Brasil é marcado pelo argumento de que o setor não precisa de mais dinheiro, de que professor não precisa ganhar mais para a educação melhorar. O que acha disso?

Maia: Ganhar pouco não é justificativa para não trabalhar ou fazer o trabalho de modo negligente. Existe sim um excesso de corporativismo que quer conquistar mais vantagens financeiras e salariais para a categoria dos professores e é refratária à discussão de resultados de aprendizagem e eficiência na educação. Isso é muito ruim.

Valor: O senhor está dizendo que o sindicalismo na educação atrapalha o avanço educacional no Brasil, em termos de qualidade?

Maia: Eu acho que sim. O sindicalismo brasileiro tem toda a legitimidade de fazer a luta sindical a favor da sua corporação, mas existe um excesso de defesa corporativa que resvala num corporativismo prejudicial. Claro que isso é compreensível se considerarmos a história das lutas no país e do desenvolvimento da economia e do Estado brasileiros, mas ainda acho que se o sindicalismo brasileiro corrigisse em alguma medida seus excessos corporativos nós poderíamos avançar muito mais rápido em relação à qualidade dos serviços prestados à sociedade brasileira.

Valor: Que excessos são esses?

Maia: A forma como foi conduzida pelos sindicatos o processo da lei do piso salarial, que é extremamente justa, adequada e esperada historicamente. Mas esse processo produziu greves longas em praticamente em todas as unidades da federação. Esse é um bom exemplo de excesso de corporativismo prejudicial e já vai me dar tanta dor de cabeça que não preciso mencionar outros.

Valor: Mas governadores, inclusive do Ceará, são acusados de não conduzir de forma exemplar o debate sobre a lei do piso do magistério.

Maia: Por isso digo que é compreensível e respeito a luta sindical. Ao longo das décadas em que a ação sindical no Brasil foi permitida, nem o sindicato nem a população têm grandes motivos para confiar no Estado brasileiro — seja a União ou outras instâncias. Existe um problema de credibilidade que tornam as negociações mais difíceis.

Valor: Como é a relação do governo cearense com os sindicatos?

Maia: Construímos, a duras penas, uma relação de respeito e relativa confiança. Nunca deixamos de receber o sindicato, mesmo nos momentos mais acirrados das greves — foram três grandes greves desde 2008 [ano de aprovação da lei do piso dos professores]. Costumava dizer para o pessoal que se eles conseguissem abandonar a defesa de excessos corporativos nós poderíamos ceder uma boa margem de entendimento. Mas ao mesmo tempo a gente entendia que isso era difícil, porque eles não se sentiam diante de um interlocutor confiável.

Valor: Qual é o nível de confiança hoje?

Maia: Melhorou quando passamos a dar publicidade às contas públicas. Os sindicatos tinham nas mãos as mesmas planilhas que o Estado usava para para mexer na sua folha de pagamento. Também foi importante ter um horizonte claro de futuro: propusemos que o Estado saíria de um patamar de gasto de 67% do Fundeb com salários de ativos para 80% em três anos. Quando há alguma confiança, transparência e planejamento futuro os sindicatos são capazes de avançar e corrigir excessos corporativos.

Maia questiona a ação corporativista dos sindicatos de professores

Valor: A política de meritocracia em vigor no Ceará não foi discutida com os trabalhadores, foi?

Maia: Não e não está funcionando bem e vamos revê-la. Temos uma política de bônus que consiste num 14º salários para todos os funcionários de escolas estaduais que atingirem as metas de proficiência dos alunos. O problema é que as metas não foram discutidas amplamente, não foram bem calibradas, envolvem apenas desempenho em português e matemática, o que desmotiva professores de outras disciplinas. Falta clareza, não é como a política de meritocracia na alfabetização que temos para as escolas municipais.

Valor: O que vai mudar na política de meritocracia do Estado?

Maia: Vamos passar a avaliar os alunos do terceiro ano do ensino médio com base no Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. Estamos trabalhando para que todos os alunos se inscrevam na prova. Inicialmente pode parecer um tiro no pé, considerado que grande números de alunos com baixo desempenho farão a prova, mesmo assim nós queremos avaliar por aí. O Enem é mais completo, tem quatro eixos temáticos, não só português e matemáticas. Também estamos montando um sistema próprio para obter as informações dos alunos que fazem o Enem, só falta um acordo com o MEC que não prejudique o sigilo da informação de quem faz a prova.

*O repórter viajou pelo projeto Mídia e Controle Social, uma parceira Andi-Unicef.

 

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